05 setembro 2011

Artigo: Uma interpretação de "Alma Corsária" de Carlos Reichenbach


Nas nossa ruas ao amanhecer
Há tal sonoridade, há tal melancolia "
(Sentimento de um Ocidental / Cesário Verde)

O filme Alma Corsária de Carlos Reichenbach é uma declaração de amor à cidade de São Paulo, não por causa do seu fausto, sua glória inscrita nos mausoléus de vidro e concreto, mas por sua pulsante vida subterrânea onde convivem marginalizados à deriva do sistema econômico. 

Os personagens principais são os poetas Torres (Bertrand Duarte) e Xavier (Jandir Ferrari) inspirados respectivamente em Augusto dos Anjos e Cesário Verde. Cesário Verde dividia-se entre a atividade no comércio e a poesia, dilema que o acompanhará pelo resto de sua vida. Sua poesia é marcada por uma intensidade romântica que combina Eros e Tânatos, amor e morte. Augusto dos Anjos nasceu numa família humilde, sua poesia é de uma virulência quase sem precedentes, rebuscada e cheia de termos científicos, ela busca segundo Alfredo Bosi "A dimensão cósmica e a angústia moral do homem".

Torres e Xavier lançam um livro de poesia numa pastelaria do centro da cidade. Nada mais sintomático, a Boca do Lixo exerce um fascínio irresistível sobre o diretor, ele esnoba os espaços nobres e assépticos e busca aproximar-se dos espaços marginalizados, lá residiria a alma da cidade, apesar da degradação aparente. A festa de lançamento do livro conta a presença de cafetões, prostitutas, desocupados, além do editor e de parentes dos autores. Representações de pessoas de meios diversos convivendo naquele ambiente singular. O diretor mistura atores de prestígio como Walter Foster e Jorge Fernando com a ex-jurada do Sílvio Santos "Flor", desta forma provoca aqueles que estabelecem uma barreira intransponível entre a alta cultura e o gênero popular. Segundo declaração dada pelo próprio diretor, Flor e Jorge Fernando estão homenageando a "Chanchada", gênero marginalizado com a chegada do Cinema Novo.

Em uma cena aparece um negro forte, aparentemente vai carregar um piano, porém ele senta e começa a tocar Claire de Lune de Debussy, dando início a devaneios dos freqüentadores. O China sonha com sua terra, Flor pensa no Havaí. As imagens de viagem forma feitas pelo pai do diretor Carlos Reichenbach: esta seqüência deveria estar em qualquer antologia do cinema brasileiro pela sua forte carga poética. Ao mostrar a dança de uma anã e o homem tocando piano, ele nos alerta para que tenhamos cuidado com os falsos julgamentos, o sublime pode estar onde menos se espera. Os ideólogos da dominação: O filme questiona se ainda há espaço para a arte num mundo dominado pelo consumismo e pela competitividade vil. 

Palavras como: flexibilização, enxugamento, reestruturação escondem uma ideologia perversa, o discurso competente que segundo a filósofa Marilena Chauí elimina o poder de reação já que quem o dissemina apresenta credenciais poderosas, títulos que mascaram as intenções perversas. O neoconservadorismo está presente depois de diversas tentativas libertárias terem fracassado. Ao sistema dominante não interessa a contestação, é preciso que todos aceitem seu destino passivamente, como se não houvesse outras alternativas. A realidade presente é vista como a única possível, a capacidade de pensar diferente é suprimida. A inadequação de Bertrand ao procurar um trabalho exemplifica este aspecto. Ele é obrigado a aceitar atividades extremamente desestimulantes, o diretor chega a colocar um esqueleto para representar o funcionário padrão da empresa, o Osório.

Zurlini: Influência primeva e fundamental

O cineasta italiano Valério Zurlini, surgido na mesma época de Antonioni é uma das maiores inspirações do diretor, chamado de o poeta imagético da melanacolia, buscava a epifania nos sentimentos prosaicos. Seus estudos cromáticos que realizou junto com o seu fotógrafo Giussepe Rottuno buscavam uma textura além do negativo, ele dialogava com as artes plásticas e com a Literatura. O amor ao próximo demonstrado por Torres ao salvar um homem que tentava se suicidar e acolher uma prostituta maltratada demonstram uma similaridade com os personagens de Zurlini.

Os Cortes Temporais: Espírito de época

O diretor cria diversos cortes temporais durante o filme, retrata a infância dos personagens no início dos anos 1960, mostra os conflitos ideológicos durante o regime militar, critica tanto a violência dos donos do poder quanto a fé cega em discursos tirados das cartilhas de Karl Marx, Stalin, Mao entre outros . Duas cenas são impagáveis, numa delas Torres ao ouvir a palavra "massa" ser citada com exaustão fala que está ficando com fome, em outra cena Torres assiste à apresentação de slides contendo personagens históricos e manda voltar ao perceber uma imagem erótica perdida no meio das outras . A anarquia é exaltada numa cena em que Torres troca de camisa diversas vezes, elas contém mensagens ideológicas. Reichebach homenageou Andréa Tonacci com uma cena em que Carolina Ferraz representando uma musa misteriosa dança em cima de um prédio. No filme Bang-Bang de Tonnaci também ocorre a dança, só que em outro contexto. A dançarina de Bang-Bang é vigorosa nos gestos e na aparência enquanto a de Alma Corsária é leve, diáfana.


Torres tem visões, a musa misteriosa aparece para cuidar dele em diversas partes do filme, o amor total só é possível nas esferas da criação artística, volatilidade das imagens efêmeras. As relações reais dele são transitórias, é um errante condenado a pequenos momentos de felicidade.

A mistura de repertórios: Uma lição modernista

Uma das características principais da obra de Carlos Reichenbach é a mistura de repertórios. Em Alma Corsária ouvimos Debussy num bar da Boca do Lixo, poemas de Cesário Verde são lidos por um personagem errante, um lúpem (Abraão Farc). Onde parece haver um deslocamento contextual encontra-se uma das maiores qualidades do diretor, absorvendo a lição Modernista, digere influências, tira a arte da assepsia refrigerada dos espaços do poder e a restitui como informação nova na fala dos excluídos que vivem o anonimato das ruas.

Fonte: Mnemocine 
Feito por Diniz Antonio Gonçalves Junior

2 comentários:

Francisco Cavalcante disse...

Carlos Reichenbach é, sem dúvidas, o maior
expoente do cinema pós-modernista brasileiro.

Porém, em relação ao artigo deste sítio, creio já tê-lo lido anteriormente num outro local. E observando suas outras postagens, me pergunto o porquê de você não escrevê-las...

Felipe Pucinelli disse...

Francisco: Acontece que eu gostei muito desse artigo, então resolvi trazê-lo para cá. A fonte do site original do artigo e o nome de quem o escreveu se encontram logo abaixo do artigo. Abraço.

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